General que foi subordinado dos EUA chega ao topo do Exército brasileiro



Promoção reacende debate sobre soberania, base legal de cooperação e impactos doutrinários da integração com os EUA





O general Alcides Valeriano de Faria Júnior, que em 2019 ocupou um posto no Comando Sul do Exército dos Estados Unidos (SOUTHCOM), foi promovido a general de Exército, a mais alta patente da Força Terrestre, em cerimônia realizada em 7 de agosto em Brasília. A ascensão do oficial recoloca em pauta discussões sobre soberania militar, limites da cooperação internacional e implicações estratégicas para o Brasil no cenário hemisférico. Trata-se de um desdobramento que projeta não apenas a carreira individual do militar, mas também sinaliza os rumos que a política de defesa brasileira poderá seguir.

À época da designação para o SOUTHCOM, Faria Júnior era general de brigada e assumiu a função de subcomandante de interoperabilidade, responsável por coordenar exercícios conjuntos, comunicações e protocolos operacionais entre forças norte-americanas e de países latino-americanos. Foi a primeira vez que um general brasileiro ocupou posição dentro da estrutura formal de comando do Exército dos EUA, fato inédito que gerou debates sobre subordinação hierárquica, autonomia decisória e enquadramento legal. Esse posto o colocou diretamente em um ambiente de alta complexidade geopolítica, em que decisões militares e diplomáticas se entrelaçam.

O pesquisador Ananias Oliveira, doutorando em Ciências Sociais pela Universidade Federal de Campina Grande e estudioso da participação dos militares na política, avalia que essa experiência já indicava o grau de proximidade do Exército brasileiro com os Estados Unidos. “Essa questão desse cargo mostra um alinhamento muito forte que o Exército brasileiro tem com os EUA e, claro, o grau de subordinação às forças norte-americanas. Um grau maior ou menor depende da interpretação, alguns vão dizer que é uma total dependência, mas mostra um alinhamento e uma subordinação”, afirma.

A indicação foi articulada ainda no final do governo Michel Temer e consolidada nos primeiros meses do governo Bolsonaro. O contexto internacional era de forte instabilidade regional, marcado pelo agravamento das tensões em torno da Venezuela. Os Estados Unidos pressionavam por ações multilaterais contra o governo de Nicolás Maduro e intensificavam operações de dissuasão na região do Caribe.

A presença de um oficial brasileiro em posição relevante dentro do SOUTHCOM trouxe questionamentos imediatos sobre até que ponto o Brasil poderia, naquele cenário, preservar uma postura autônoma em eventuais situações de crise. A ausência de informações públicas sobre a base legal da designação reforçou as críticas de setores acadêmicos e jurídicos, preocupados com a possibilidade de submissão de um oficial brasileiro a um comando estrangeiro.



Em 2020, Jair Bolsonaro foi o primeiro presidente brasileiro a visitar as instalações do SOUTHCOM
Compras das Forças Armadas administradas por fundos de Washington

Oliveira lembra ainda que parte significativa das compras feitas no exterior pelas Forças Armadas brasileiras é administrada por fundos sediados em Washington, movimentando valores de centenas de milhões ou até bilhões de dólares, o que adiciona outra camada de dependência nas relações.

“Até nisso há um alinhamento: os fundos ficam em Washington e movimentam centenas de milhões ou bilhões de dólares. Em qualquer conflito entre Brasil e Estados Unidos, esse arranjo mostra a vulnerabilidade brasileira”, destaca. Ele também ressalta o aspecto formativo: “A maior parte dos oficiais brasileiros, sobretudo os das forças especiais, em algum momento de sua formação participa de cursos nos Estados Unidos. A existência de um posto de comando diretamente vinculado ao Exército norte-americano reforça essa realidade de alinhamento e subordinação.”

Atualmente, a promoção de Faria Júnior ocorre em um contexto distinto. O governo Lula adota uma política externa que busca equilíbrio entre cooperação e autonomia estratégica, preservando laços com Washington, mas reforçando também sua atuação em fóruns como os BRICS e ampliando parcerias Sul-Sul sem deixar de se colocar como um ator que procura manter diálogo com diferentes polos de poder, sem abrir mão de iniciativas de integração regional.

Questionado sobre se a função poderia ser considerada formalmente uma relação de subordinação, Oliveira pondera: “Se a gente for pensar formalmente, eles analisam como questão de cooperação. Ora, analisando historicamente a influência dos Estados Unidos no Brasil, a interpretação pode se dar como uma subordinação. Repito: formalmente, friamente, dentro das declarações da maioria dos oficiais do Exército, pode-se pensar que é uma questão de cooperação e alinhamento. Mas é preciso analisar também o contexto histórico. À luz da história da relação Brasil-Estados Unidos, fica difícil afastar a ideia de subordinação, já que esse alinhamento serve também para difundir a doutrina norte-americana e reforça a dependência em termos de treinamentos e intercâmbios.”

Ele acrescenta que essa análise não pode se restringir ao episódio do general. “Não é só o fato de existir esse cargo no SOUTHCOM. É todo um contexto histórico e atual que permite essa análise. O alinhamento, o envio de vários oficiais para os Estados Unidos, a dependência em termos de treinamentos e compras externas fazem parte de um padrão de subordinação estrutural”, afirma.
Promoção de general no SOUTHCOM em meio a crise com os EUA

A promoção ocorreu em meio aos recentes atritos dos Estados Unidos com o Brasil, que se manifestaram em ataques comerciais contra setores estratégicos da economia brasileira e em pressões internacionais sobre o julgamento do ex-presidente Jair Bolsonaro, gestos que atentam contra a soberania nacional. Nesse cenário, a experiência de Faria Júnior no SOUTHCOM ganha novos contornos: de um lado, representa conhecimento técnico valioso sobre protocolos de interoperabilidade e coordenação multinacional; de outro, simboliza a necessidade de o Brasil estabelecer limites claros para sua cooperação militar.

O cargo de general de Exército confere a Faria Júnior influência direta sobre a doutrina, o adestramento e as prioridades de modernização da Força Terrestre. Essa posição permite definir linhas estratégicas de atuação, orientar programas de intercâmbio e supervisionar a participação do Brasil em exercícios multinacionais. Sua trajetória no exterior, marcada pelo ineditismo do posto nos EUA, pode ser utilizada como argumento para aprofundar protocolos de interoperabilidade, mas ao mesmo tempo exige que a política de defesa brasileira saiba compatibilizar esses aprendizados com os princípios de soberania e autonomia decisória.

A presença crescente do Brasil em exercícios como CORE, UNITAS e PANAMAX — exercícios multinacionais que simulam desde operações terrestres combinadas (CORE), passando por manobras navais de defesa marítima e integração entre marinhas (UNITAS), até cenários de proteção do Canal do Panamá e de rotas comerciais estratégicas (PANAMAX) — reforça a relevância do debate.

Essas manobras, que envolvem operações conjuntas de defesa marítima, combate ao narcotráfico e ajuda humanitária, colocam as Forças Armadas brasileiras em contato permanente com doutrinas estrangeiras, especialmente a norte-americana. Nesse contexto, a influência de um general com experiência direta no SOUTHCOM pode ser determinante para moldar padrões de treinamento, aquisições, escolhas estratégicas e formação.




Por: ICL Noticias

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