Bombardeio israelense a Doha, no Catar, em 9 de setembro de 2025 [Câmera de Segurança/Reprodução/Agência Anadolu] |

Toda vez que o primeiro-ministro Benjamin Netanyahu tenta matar o líder do Hamas, Khaled Meshaal, o resultado é humilhação para Israel.
A primeira vez foi em 1997. Agentes do serviço de inteligência israelense Mossad, sob suas ordens, entraram na Jordânia, posando de turistas canadenses. Dois deles aguardaram na entrada do escritório de Meshaal em Amã. Quando o alvo entrou, um deles pressionou um dispositivo contra seu ouvido esquerdo que transmitiu um veneno de ação rápida.
Os guarda-costas de Meshaal perseguiram os dois agentes, e outros membros da equipe fugiram para a recém-instalada embaixada israelense em busca de refúgio. No início, pensou-se que o ataque havia falhado. Meshaal descreveu o ataque como um “barulho alto no meu ouvido” e um “choque elétrico”. Mas conforme o veneno começou a fazer efeito, sua condição se deteriorou.
Meshaal era cidadão jordaniano na época, e o rei Hussein ficou furioso. Ele exigiu que Israel entregasse o antídoto e ameaçou processar os agentes do Mossad e se retirar do histórico acordo de paz que havia assinado três anos antes em Wadi Araba, reconhecendo Israel.
O então presidente dos Estados Unidos, Bill Clinton, constrangeu Netanyahu a cumprir com as exigências. De forma humilhante, Danny Yatom, chefe do Mossad, voou com o antídoto a Amã. Meshaal, que já estava em coma, sobreviveu.
Não apenas isso, mas Hussein só liberou os dois agentes do Mossad que os guarda-costas do Hamas haviam capturado. Seis outros membros da equipe estavam escondidos na embaixada israelense, e o rei só os permitiria sair se Israel soltasse da prisão o fundador do Hamas, sheikh Ahmed Yassin, junto com um grande número de outros prisioneiros palestinos.
Todo o episódio se mostrou um duro golpe a Israel. O sheikh iniciou uma turnê da vitória por toda a região. A carreira de Meshaal no Hamas foi lançada. Ele era relativamente júnior na organização antes do ataque, e o próprio Hamas ganhou prestígio como um movimento que poderia enfrentar um valentão.
Se o mesmo cenário se repetirá hoje é outra questão, mas os elementos para uma grande humilhação de Israel já se apresentam.
Enviando uma mensagem
Um mero procedimento padrão de segurança, de mudar de local após uma reunião, e separar os participantes de seus celulares, salvou Meshaal e toda a equipe negociadora do Hamas da aniquilação em Doha na terça-feira (9). O prédio em que estavam era próximo ao que os aviões israelenses atingiram, e o momento do bombardeio foi preciso; todavia, erraram o local.
Conforme a verdade veio à tona, a reação israelense logo passou do júbilo, por terem supostamente eliminado a liderança do Hamas, como fizeram com líderes do Hezbollah e da Guarda Revolucionária do Irã, para recriminação cíclica.
Inicialmente, Yair Lapid, líder da oposição que alega defender a libertação dos prisioneiros de guerra ainda em Gaza, parabenizou a Força Aérea de Israel e o serviço de inteligência interna Shin Bet “por uma operação excepcional contra nossos inimigos”.
Sua postagem na rede social X (Twitter), porém, foi logo substituída: “Os membros do Hamas são filhos da morte [sic], mas, neste momento, o governo precisa explicar como essa operação não levará à morte dos reféns, e se o risco a suas vidas foi levado em consideração na decisão de realizá-la. Não podemos aguardar mais. A guerra deve acabar e precisamos trazê-los de volta para casa”.
A operação para assassinar os negociadores do Hamas, enquanto se reuniam para discutir uma proposta de acordo enviada pelo presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, foi batizada por Israel de “Cúpula de Fogo”.
Trata-se de um ato de um Estado que é supremacista não apenas na Palestina ocupada, mas em toda a região. Certamente, Netanyahu e seus estrategistas não ignoraram as implicações de bombardear o Catar.
Muito pelo contrário. Pensaram em mandar uma mensagem ao Catar, ou a qualquer outro Estado que porventura receba o Hamas, de que Israel pode fazer o que quiser; que suas forças militares podem vagar pela região para atingir qualquer alvo a qualquer momento, a seu bel-prazer, independentemente da soberania, ou do espaço aéreo por onde tenham que sobrevoar para chegar lá.
Netanyahu também ameaçou atingir membros do Hamas na Turquia. O ataque ao Catar diz a Ancara que eles poderiam ser os próximos.
Bombardeando as negociações
Para o cientista político Menachem Klein, Israel se tornou uma sociedade genocida que abandonou a diplomacia para agir meramente pela força. Para Klein, em comunicação com a rede britânica Middle East Eye, essa abordagem “vai muito além da Palestina: é o Irã, é a Síria”, incluindo ameaças à Turquia.
Israel também mostrou “falta de consideração pelo Egito e certamente no Iêmen … trata-se de basicamente de uma reengenharia forçada de toda a região”, acrescentou. “Sua razão de ser é a supremacia judaica. É um regime supremacistas, e quer estabelecer a supremacia judaica não apenas na Palestina, mas em toda a região, por meio da força — também contra os palestinos na Cisjordânia, e os palestinos de também dentro de Israel, dos territórios de 1948”.
A campanha de Netanyahu para dar nova forma à região tem implicações pantagruélicas não apenas aos vizinhos de Israel, mas a todos os Estados perto e longe de suas fronteiras: aos Estados do Conselho de Cooperação do Golfo (CCG), e mesmo àqueles que normalizaram via Acordos de Abraão.
A curto prazo, bombardear a liderança política do Hamas é bombardear os negociadores. Se o ataque tivesse obtido êxito, não restaria ninguém com quem negociar; ninguém com autoridade para dizer a qualquer um dos guardas remanescentes em Gaza para libertar seus prisioneiros. Seria, portanto, o fim de toda tentativa de trazer de volta vivos os prisioneiros restantes.
Israel bombardeou, deste modo, o próprio processo de negociação. A mediação egípcia chegou ao fim da linha, e é difícil ver como a mediação do Catar pode continuar. Mesmo agora, com a equipe do Hamas ainda viva, todas as negociações para liberar os reféns em Gaza provavelmente terminaram.
A realidade é óbvia a qualquer um que tenha acompanhado as negociações nos últimos dois anos. Netanyahu frustrou sete tentativas de se firmar um acordo, incluindo planos que sua própria equipe de negociação havia rubricado. Agora, mais do que nunca, é evidente que ele espera encerrar toda e qualquer negociação e “solucionar” Gaza somente pela força.
Implicações problemáticas
A única opção restante é o enviado americano Steve Witkoff assumir o processo e negociar diretamente com o Hamas, acima de Israel. Isso significaria, no entanto, que seu chefe teria que coagir o governo israelense a suspender sua operação terrestre na Cidade de Gaza, algo que tem relutado em fazer.
Além disso, se Trump sabia com antecedência do ataque a Doha e deu sinal verde, ao menos ao não detê-lo, que valor teria qualquer garantia que possa dar ao Hamas de que, se libertarem todos os reféns, a guerra cessaria e Israel se retiraria de Gaza?
Esta é a segunda vez que Israel usa um processo de negociação ativo como cobertura para lançar um ataque surpresa. A primeira foi seu ataque ao Irã em junho, que começou dias antes de negociadores de Teerã e Washington se reunirem em Omã para discutir o programa de enriquecimento nuclear iraniano.
No caso recente, o comitê de negociação do Hamas estava reunido precisamente para discutir uma proposta de cessar-fogo do próprio Trump, de modo que suas garantias, portanto, não valem mais nada.
A longo prazo, as implicações deste ataque, embora fracassado, são muito mais preocupantes aos chefes de Estado árabes.
Não nos iludamos. A segunda geração de autocratas árabes que assumiu as rédeas na Arábia Saudita, nos Emirados Árabes Unidos e no Bahrein odeia o Hamas, a Irmandade Muçulmana e o Hezbollah ainda mais do que Netanyahu.
Mas o efeito da operação de Israel é muito maior do que isso. É desafiá-los pessoalmente como líderes de seu próprio espaço aéreo e de seus próprios países.
Como em 1997, a tentativa fracassada de ataque ao Hamas será, de imediato, um impulso a sua reputação, criminalizado como grupo terrorista nos Estados Unidos, Reino Unido e em outros países.
Ninguém mais pode dizer a liderança política em Doha meramente vive em hotéis cinco estrelas enquanto Gaza passa fome. Agora estão na linha de frente da luta contra Israel.
Também é uma lição objetiva ao governo do Líbano, que tenta convencer o Hezbollah a se desarmar nacionalmente. O argumento do Hezbollah de que a medida deixaria o Líbano completamente vulnerável aos caprichos de Israel ganha força. Aqueles que pressionam para impor o plano americano-saudita de desarmar o Hezbollah silenciaram por ora, diante do temor de que confrontações possam eclodir se as decisões forem aplicadas.
Arábia Saudita, Emirados e Jordânia, em particular, terão que pensar até que ponto podem desafiar as perspectivas e reivindicações de seu próprio povo, e o quão fracos isso os faz parecer se, como fontes israelenses agora afirmam, secretamente permitiram que caças israelenses chegassem a Doha. De acordo com o correspondente militar da rede Ynet News, o ataque no Catar foi “realizado em coordenação com outros países”.
As opções são fechar seu espaço aéreo a todos os voos israelenses, ou os Emirados e o Bahrein se retirarem, ou suspenderem sua adesão, aos Acordos de Abraão. Os emiradenses já disseram, por exemplo, que a anexação israelense da Cisjordânia seria uma “linha vermelha” contra o que descreveram como “integração regional”.
Netanyahu perde credibilidade
Netanyahu teve uma semana ruim. Começou na segunda-feira com o ataque a tiros em Jerusalém ocupada que matou seis colonos israelenses, e quatro mortes de soldados estacionados em Gaza. O Hamas reivindicou a responsabilidade por ambas as operações.
Para alguém que declarou mais de uma vez nos últimos dois anos que Israel está à beira da vitória, Netanyahu rapidamente perde sua credibilidade em casa.
O Hamas segue lutando, tão ferozmente hoje quanto no primeiro dia, e civis e tropas israelenses estão morrendo em números cada vez maiores.
Na terça-feira, Netanyahu tampouco conseguiu eliminar a liderança do Hamas e, em vez disso, pode ter eliminado todas as tentativas de terminar o conflito via negociações. O Hamas, por outro lado, ganhou louros em reputação.
Trump, oficialmente, está “infeliz” com a operação militar e buscou se distanciar dela, ao insistir que a primeira vez que ouviu falar dela foi com seus próprios chefes militares. Isto, apesar do fato de que em seus primeiros briefings para correspondentes, a Casa Branca foi rápida em alegar ciência.
Se o ataque israelense a Doha não elucidar a Trump que seguir mansamente de um Estado pária prejudicará sua posição como líder mundial, então nada o fará. Trump é um homem que sente desfeitas pessoais com particular intensidade e se lembra delas. Esta foi entregue por seu aliado mais próximo.
Mas este ataque, antes de tudo, é um alerta para a região como um todo. O guarda-chuva da segurança americana, pelo qual pagaram tão caro na última visita de Trump à região, não vale nada. Os Acordos de Abraão também são um mito. Nenhuma paz pode ser alcançada reconhecendo Israel.
Somente por meio de uma aliança de segurança regional robusta para conter Israel — ao persuadir o Estado supremacista de sua pequenez, por meio do isolamento diplomático e econômico — as ambições hegemônicas de Netanyahu encontrarão seu verdadeiro fim.
Por: Monitordooriente
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