(Fotos: Bruno Kelly/Amazônia Real) |
No Vale do Javari, mortes se
tornam frequentes e a falta de atendimento médico faz etnia sofrer com doenças
contagiosas, como hepatite e aids, e o temido suicídio (Bruno Kelly/Amazônia
Real)
TI Vale do Javari (AM) –
Entre os indígenas Kanamari, quem morre faz uma longa viagem até o Céu
Interior. Mas essa definição do paraíso pós-morte não aplaca a dor dos que
ficam. Os Kanamari costumavam se refugiar em outra comunidade ou mesmo partir
floresta adentro para esperar o sofrimento passar. Era o antídoto para tentar
esquecer o familiar morto. Depois de meses, um ano ou até mais, voltavam para
recomeçar a vida: plantar, pescar, fazer festa.
Só que as mortes, muito delas por
doenças trazidas de fora, têm sido tão frequentes, que o luto permanente vem
interferindo na convivência social e no lazer desse povo. A maioria já não
consegue se recuperar pela perda de um parente, pois logo em seguida se depara
com outra morte na família.
“O Kanamari é um povo que sofre
muito quando morre alguém da família. Morreu parente adulto, antes de se
pintar, morreu outro parente de novo. Aí faz esse resguardo. Quando quer
começar de novo, outro parente [morre]. É uma coisa muito complicada o que está
acontecendo”, desabafa o cacique da aldeia Massapê, Eduardo Dianym Kanamari. “A
gente pede que os doutores façam alguma coisa. Muitos documentos falando da
nossa situação já saíram daqui e nada foi feito.”
Na Terra Indígena Vale do Javari,
no extremo oeste do Amazonas, na fronteira com o Peru, a precária assistência à
saúde tem resultado em enfermidades fatais, doenças misteriosas, mortes sem
explicação e um crescente índice de suicídio, fenômeno que os Kanamari
desconheciam até 13 anos atrás.
“Antes, o Kanamari morria apenas
de velhice, de mordida de cobra”, lembra Adelson Korá Kanamari, que é vereador
e diretor da Associação Kanamari do Vale do Javari (Akavaja). Hoje, “morrem de
doença que eles pegam dos brancos. Malária, hepatite, aids. Isso não tinha
antes”, afirma.
Segundo o presidente da Akavaja,
Higson Dias Kanamari, muitas mortes não são notificadas, tornando imprecisos os
dados sobre doenças e óbitos registrados pelo Distrito Sanitário Especial
Indígena do Vale do Javari (Dsei), em Atalaia do Norte (AM). Há dois anos, as
sete mortes por falta de assistência médica ocorridas em um tempo tão curto
levaram os Kanamari a ocuparem a sede do Dsei Vale do Javari, cobrando uma
resposta do governo federal.
“Pensávamos que iria melhorar,
mas fomos enganados. Veio o pessoal de Brasília [Secretaria Especial de Saúde
Indígena]. Disseram que iam aumentar recurso de gasolina, de medicamento, etc,
e isso durou apenas uma semana. Depois, tiraram o recurso. Hoje temos
deficiência de técnicos nos polos-base, não temos enfermeiro, técnico em
enfermagem, remédios suficientes. Médico, nem se fala”, diz Higson.
Os Kanamari são um dos seis povos
contatados que habitam a TI Vale do Javari. Os graves problemas de saúde, e de
falta de assistência, atingem a eles e também aos Kulina, Marubo, Matís,
Mayoruna e Tsohom-Dyapá, de recente contato. No Vale do Javari, há o maior
número de índios isolados do Brasil, como os nômades Korubo. Em 1996, um
pequeno grupo dessa etnia foi contatado, mas o restante dos Korubo vive em
condições de isolamento. Por muitos anos, os Kanamari eram considerados
marginalizados entre os agentes do Estado brasileiro, as populações ribeirinhas
e até mesmo entre os indígenas. A agência Amazônia Real esteve entre
os Kanamari no final de novembro.
Os pajés e os médicos cubanos
O cacique Adílio Arabonã
Kanamari, da aldeia Bananeira, que fica a cerca de duas horas de barco da
aldeia Massapê, é um talentoso músico e pajé. Nas entrevistas que deu à Amazônia
Real, suas falas eram antecedidas por canções compostas por ele. No meio de cada
canto, ele lembrava dos dramas passados e de perdas pessoais.
“Perdi meu irmão, que a
hepatite matou. Meus filhos também. Morreram de doença do branco. Morreu meu
filho e minha filha, levaram para Tabatinga [município do Alto Solimões] para
ver se ia dar jeito, mas infelizmente não retornou para a aldeia. Veio a
óbito”, lamenta.
Apesar de pajé, Adílio Arabonã se
revela incapaz de enfrentar o drama de seu povo. “Só sei curar doença
tradicional dos Kanamari. A doença do não-índio, do branco, não tenho conhecimento.
Se fosse enfermeiro ou médico, eu ia saber também, e saber procurar remédio
para curar as doenças do branco.”
O que já era difícil ganha
contornos dramáticos com a saída dos médicos cubanos. Antes deles, os indígenas
do Vale do Javari nunca haviam sido atendidos por médicos nos polos de saúde.
Recebiam atendimentos ocasionais, em geral de instituições de pesquisa ou
assistenciais durante breves expedições dos profissionais de saúde.
Na aldeia Massapê, um agente de
saúde indígena se desdobrava nas aplicações dos remédios. Em Bananeira, uma
única técnica em enfermagem atendia aos indígenas com pedidos de medicamentos
para dor de cabeça. Na visita da Amazônia Real, os indígenas aguardavam a
chegada de uma equipe da Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai), do
Ministério da Saúde, com enfermeiros e mais técnicos em enfermagem, além de
remédios e insumos.
“Os médicos (cubanos) já saíram
das nossas aldeias. Vamos enfrentar dificuldades. Eu não sei como o governo
está pensando para reativar esses médicos dentro da nossa comunidade”, disse
Higson Kanamari. O governo de Cuba decidiu retirar os profissionais do programa
Mais Médicos em retaliação às ofensas proferidas por Jair Bolsonaro, antes
mesmo de ele assumir a Presidência.
Foram abertos concursos para
contratar novos médicos, mas, ao contrário dos cubanos, os brasileiros não
querem ir para lugares remotos. Apenas uma das seis vagas para a região da TI
Vale do Javari foi preenchida, e o edital continuava em vigência em novembro.
Procurado pela agência Amazônia Real, o Ministério da Saúde, via
assessoria de imprensa, não informou onde o médico contratado está atuando, nem
se as cinco vagas restantes já haviam sido preenchidas. O nível de atendimento
permanece o mesmo.
“Falta remédio para atender o
paciente. Não temos material de sutura, que é um trabalho próprio do agente de
saúde, nem equipamento para medir pressão. São muito preocupantes também os
casos de aids”, alertou o agente indígena Sebastião Kanamari.
O presidente da União dos Povos
Indígenas do Vale do Javari (Univaja), Paulo Marubo, disse nesta semana à
reportagem da Amazônia Real que até o momento nenhum médico está atuando na TI
Vale do Javari.
“Soube, pelo Dsei Vale do Javari,
que dois profissionais teriam se cadastrado, mas eles não chegaram. Não há
médicos até agora no nosso território”, disse Paulo Marubo.
As estatísticas sombrias
Dados enviados pelo Ministério da
Saúde, a pedido da Amazônia Real, informam que entre 2010 e 2018 foram
notificados 83 casos de hepatites dos tipos virais B, B+D e C no Dsei Vale do
Javari, sendo 25 notificados pelo Polo Base Itacoaí e 8 casos notificados pelo
Polo Base Médio Javari. Segundo o órgão, não houve registros de aids na etnia
Kanamari nos últimos três anos.
“A Sesai não tem um tratamento
específico para a hepatite. Temos também casos de droga, que já entrou e
impregnou nosso povo. Tem HIV e a Sesai não dá resposta, não faz diagnóstico.
Não sabemos se a pessoa morreu de hepatite ou com vírus HIV”, diz Higson
Kanamari.
Ele lembra que, tempos atrás,
instituições de pesquisa desenvolveram diagnósticos sobre aids, mas esses
programas de saúde não tiveram continuidade. “Na época, foi um número pequeno
de casos. Hoje sabemos que existem muitos e não apenas entre nosso povo. É uma
doença silenciosa e sem controle”, diz o presidente da Akavaja.
Adelson Korá Kanamari contesta o
número oficial do ministério sobre hepatite. Somente em 2018 foram registrados
335 casos de hepatite no Vale do Javari, segundo informação que ele que obteve
na Secretaria Municipal de Saúde de Atalaia do Norte, na condição de vereador.
“Na minha comunidade (aldeia São
Luís, também no rio Itacoaí) tem casos de aids. Nas outras etnias também.
Ninguém da saúde acompanha. Morrer é natural do ser humano. Mas estamos vendo
mortes que não sabemos a causa, a pessoa fica irreconhecível. O que será?”,
indaga.
Cerca de 15 anos atrás, uma
epidemia de hepatite chamou a atenção da opinião pública sobre o drama dos
indígenas no Vale do Javari. O governo enviou equipes médicas ao local, em
caráter de urgência, dando a impressão de que a situação estaria sob controle.
“Isso é mentira. Silenciosamente,
estão morrendo todo ano, Marubo, Matís, Kanamari e Maioruna. Acompanhei a morte
do meu tio, quando foi morto por hepatite, com barriga grande. Ele morreu
vomitando sangue e tudo mais. As pessoas estão totalmente sem acompanhamento”,
diz Adelson.
Pelos dados do Ministério da
Saúde, a principal causa de morte entre os Kanamari são as complicações do
aparelho respiratório, entre elas, a pneumonia, responsável por uma em cada
quatro mortes. Em seguida, estão as lesões autoprovocadas intencionalmente
(suicídios), com 21%, os óbitos associados ao parto, nascimento e período
neonatal, com 10%, desnutrição (7%) e problemas associados ao coração e ao
aparelho circulatório, tais como parada cardíaca e respiratória (5%), enquanto
as demais causas representam cerca de 2% cada.
Para o Ministério da Saúde, houve
uma diminuição no número de casos de malária de 2018 (1.309) em comparação com
os de 2013 (1.761) no Dsei Vale do Javari. Mas a doença ainda debela os
Kanamari de forma implacável.
A Amazônia Real acompanhou
o drama da professora Elania Dias Kanamari, infectada pela malária. A
reportagem ficou hospedada na casa dela e do marido, Bayá Kanamari, que nas
horas vagas se distraía tocando flauta confeccionada por ele.
Sem poder ir à escola, a
professora passava os dias deitada na rede, prostrada, com fortes dores do
corpo e febre, sendo atendida por dois agentes indígenas de saúde. A aldeia
estava sem enfermeiro e o médico cubano já tinha ido embora do polo-base,
instalado em Massapê.
Elania só foi melhorar nos
últimos dias em que a reportagem esteve na Terra Indígena. “É muito ruim isso.
Muitas dores. Aqui malária é comum”, disse ela, quando voltou a acompanhar o
marido nos afazeres domésticos e se dirigia até o igarapé para lavar roupa.
Suicídio virou epidemia, dizem os
Kanamari
Esse estado de falta de
atendimento e acompanhamento médico torna a vida dos Kanamari mais difícil,
sobretudo quando eles são confrontados com uma realidade com a qual não sabem
lidar. Em desespero, os Kanamari acabam tirando a própria vida.
“A primeira morte por suicídio
aconteceu em 2005, na aldeia Bananeira Velha. Foi a esposa de um tio meu. De
2005 para cá, são mais de 30 suicídios entre os Kanamari. A maioria jovens.
Isso não acontecia”, diz Adelson Korá, que se conforta ao dizer que no ano
passado não houve nenhum caso. Para ele, além da angústia de estar com alguma
enfermidade grave, o Kanamari se impacta da convivência com não-índios, quando
vai à cidade em busca de estudos ou acesso à atendimento de saúde. Quando
retorna para a aldeia, está “descontrolado”.
“Hoje temos uma média de 1.300
indígenas do Vale do Javari morando em Atalaia do Norte. A maioria, jovens. Aí
vem o alcoolismo, a droga, a prostituição, vem uma série de problemas. A Funai
não discute, a Sesai não discute. A gente precisa fortalecer projetos de
benefícios e desenvolvimento na comunidade. Ter uma boa educação. Porque isso
garante que o jovem fique na comunidade”, afirma, defendendo que a vida na
aldeia seja o remédio para esse problema.
Higson afirma que o suicídio não
pertence ao mundo Kanamari, mas ele surgiu “do nada” e virou uma epidemia.
“Causa um transtorno muito grande no nosso povo. Não sei o que é esse tipo de
transtorno, se é fraqueza mental. É uma coisa inexplicável. É preciso um estudo
científico”, diz.
O cacique Adílio Arabonã Kanamari
relata um caso em sua família. “Meu cunhado desceu para cidade (Atalaia do
Norte) e viu uma mulher não-índia se matando. Ele trouxe essa ideia para a
aldeia. Agora os jovens estão se matando, estamos lutando contra esse vírus da
cidade”, afirma.
No ano passado, um psicólogo foi
contratado. Ele visitou duas vezes a terra indígena e nunca mais voltou, dizem
os Kanamari.
“Esses profissionais entram
apenas para fazer pesquisa antropológica. Eles precisam conviver, sentir,
comer, dormir, conhecer o povo Kanamari”, protesta Higson.
Questionado pela Amazônia
Real, o Ministério da Saúde disse que a Sesai incluiu como meta nacional a
redução de 10% da taxa de óbitos por suicídio nos 16 DSEI prioritários para
esse agravo até 2019. Para o órgão, esses casos na população indígena não estão
aumentando no Brasil, mas sendo oficializados, qualificados e divulgados. Uma
“Cartilha de Prevenção do Suicídio em Povos Indígenas com proposta de Linha de
Cuidado Locais” também foi lançada pelo ministério. Segundo a assessoria, nos
DSEI que realizaram ações de prevenção do suicídio, observou-se uma diminuição
de 10,2% de óbitos entre os anos de 2015 e 2016. Conforme a assessoria do MS,
foram registrados quatro suicídios no Vale do Javari. Cinco em 2017 e um em
2018.
A desnutrição infantil
Outra doença que intriga os
indígenas é a desnutrição. É difícil para os Kanamari entender como o
diagnóstico de saúde indica que as crianças estão com baixo peso ou falta de
vitaminas.
“A Sesai diz que é falta de
comida. Mas a Sesai nunca vem aqui para ver com os próprios olhos. Vocês
[repórteres] estão vendo. Aqui tem muita comida. Por que então tem esse tipo de
doença?”, questiona Higson. Para os Kanamari, a desnutrição e outras doenças
acabam sendo transmitidas pelos brancos, que também trazem “comida ruim, carne
de boi, enlatado e açúcar”.
O presidente da Akavaja afirma
que falta ao poder público olhar com mais atenção para os problemas de saúde
dos indígenas da região. “Não existe dentro da Sesai uma logística para o
atendimento, programação ou planejamento para a saúde indígena. E não é apenas
entre os Kanamari, é em todos os povos. A Sesai não tem diagnóstico voltado
para os povos indígenas do Vale do Javari”, desabafa ele, preocupando-se com o
futuro de seu povo.
O medo da doença e da perspectiva
da morte também faz com que os Kanamari sintam aversão aos tratamentos médicos
ocidentais. Eles temem ir para a cidade, onde geralmente são tratados com
preconceito pelos profissionais de saúde.
“Eles não gostam de ficar fora da
comunidade, ao lado de pessoas estranhas, tratados de maneira desrespeitosa.
Tem muito preconceito do branco. Por isso os parentes não querem ir para a
cidade”, diz o cacique Eduardo Dyanim Kanamari.
Via Amazonia Real
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