Grupos missionários estão usando dispositivos de áudio em territórios protegidos da floresta tropical para atrair e evangelizar povos indígenas isolados ou de recente contato na Amazônia. Uma investigação conjunta do GLOBO e do jornal britânico “The Guardian” revela que aparelhos movidos a energia solar, recitando mensagens bíblicas em português e espanhol, apareceram entre membros do povo Korubo no Vale do Javari, perto da fronteira do Brasil com o Peru.
Drones também foram avistados por agentes de segurança encarregados de proteger as áreas. Os equipamentos têm levantado preocupações sobre atividades missionárias ilegais, apesar das rigorosas medidas governamentais destinadas a salvaguardar indígenas isolados.
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Esta não é a primeira tentativa recente de grupos missionários de alcançar comunidades isoladas e não contatadas no Vale do Javari. Pouco antes da pandemia, um grupo de americanos e brasileiros afiliados a igrejas evangélicas foi descoberto planejando fazer contato com os korubos. Eles usaram hidroaviões para mapear trilhas e localizar malocas, em caso revelado pelo GLOBO que provocou reação do Ministério Público e da Justiça Federal.
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Três missionários foram identificados como supostos responsáveis por esses esforços de contato: Thomas Andrew Tonkin, Josiah McIntyre e Wilson Kannenberg, ligados à Missão Novas Tribos do Brasil (MNTB) e a um grupo humanitário conhecido como Asas do Socorro. Eles foram proibidos de entrar em território Indígena por ordem judicial durante a crise da Covid. Tonkin, por exemplo, chegou a ficar muito perto de uma área conhecida como igarapé Lambança, um dos últimos redutos de korubos em isolamento no Vale do Javari.
Agora, os missionários estão de volta ao Vale do Javari e às cidades vizinhas, como Atalaia do Norte e Benjamin Constant, com uma nova ferramenta para driblar a fiscalização.
O primeiro dispositivo descoberto, um aparelho amarelo e cinza do tamanho de um celular, apareceu misteriosamente em uma aldeia Korubo recentemente. O equipamento, que recita a Bíblia e palestras inspiradoras de um evangélico batista americano, pode fazer isso indefinidamente, mesmo sem energia, graças ao seu painel solar. Consta em relatos colhidos pela reportagem que até sete unidades desses aparelhos se encontram nas mãos dos korubos.
‘Não alcançados’
Missionários usam aparelhos secretos para evangelizar indígenas isolados
No único aparelho localizado pelo GLOBO, uma mensagem diz: “Vamos ver o que Paulo diz ao considerar sua própria vida em Filipenses capítulo 3, versículo 4: ‘Se alguém mais pensa que tem motivos para confiar na carne, eu tenho mais.’”
O governo federal não permite o proselitismo em território Korubo. Sua política, vigente desde 1987, estipula que grupos isolados devem iniciar o primeiro contato, uma postura que tornou o Brasil pioneiro no respeito à autodeterminação indígena.
O Estado também controla rigorosamente o acesso para proteger os Korubo e outros povos não contatados no Vale do Javari de doenças comuns às quais eles têm pouca ou nenhuma imunidade.
O dispositivo hoje nas mãos dos Korubo é chamado de Messenger e é distribuído pela organização Batista In Touch Ministries, sediada em Atlanta, Geórgia. É agora uma curiosidade em posse da matriarca da comunidade Korubo, Mayá.
A In Touch não vende o Messenger. Os dispositivos são doados para pessoas “não alcançadas” em países ao redor do mundo e estão disponíveis em mais de 100 idiomas. Com seu painel solar e lanterna embutida, o dispositivo é projetado para levar o Evangelho a lugares que não têm eletricidade ou conexão com a internet confiáveis.
Ao GLOBO, Seth Grey, diretor de operações da In Touch Ministries, confirmou que a organização usa os dispositivos, pois o Messenger é eficaz.
— É construído para ter funcionalidade, movido a energia solar, com uma lanterna. Então eles descobrem o conteúdo — disse ele, acrescentando que o dispositivo é alto o suficiente para “grupos de escuta” de 20 pessoas.
Grey mencionou que ele pessoalmente entregou 48 dos dispositivos ao povo Wai Wai na Amazônia há quatro anos, com conteúdo religioso em sua língua e em português. Os Wai Wai têm colaborado com missionários americanos por décadas, contatando e fazendo proselitismo entre comunidades no norte amazônico, segundo a antropóloga Catherine V Howard.
Grey disse que o Messenger — em uso no Vale do Javari em violação da política brasileira — não deveria estar presente na região.
— Não vamos a nenhum lugar onde não somos permitidos — disse ele, referindo-se à In Touch, reconhecendo que ele estava ciente de missionários de “outras organizações” que levam os dispositivos para regiões e países onde são proibidos.
Os Korubo, conhecidos por sua mortal perícia com bordunas, são um povo de recente contato e, portanto, de grande interesse para certos missionários focados em pregar para os “não alcançados”.
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O sargento Cardovan da Silva Soeiro, policial militar que atua no posto de proteção da Funai, na entrada do território indígena do Vale do Javari, disse que soube dos dispositivos por um indígena que estava na base.
— Enviei um relatório com as fotos para a inteligência policial, mas até agora não tivemos retorno. Os indígenas não quiseram me dar os dispositivos, então achei melhor não insistir. Apenas consegui as imagens — afirma.
Cardovan disse que os policiais militares estão cientes da presença de missionários supostamente ligados a outro grupo cristão, as Testemunhas de Jeová:
— Algumas dessas entidades religiosas provavelmente estão tentando se aproximar.
Drones misteriosos
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Ele também relatou ao comando da polícia a presença de “drones misteriosos” que apareceram recentemente sobre a base, geralmente no final da tarde. Cardovan recebeu ordens de derrubá-los, mas até agora não conseguiu fazê-lo.
— Não sabemos se eles pertencem a missionários, traficantes de drogas, pescadores ou garimpeiros que estão observando a base para ver se terão passagem livre por aqui. Quando recebi a ordem do comando para derrubá-los, mirei meu fuzil, mas o drone fugiu em alta velocidade. Parecia muito sofisticado — revelou.
Daniel Luís Dalberto, procurador do Ministério Público Federal (MPF) que monitora os direitos dos povos isolados e de recente contato, disse que o ponto-chave para entender a presença de missionários não é quantos estão no território, “mas sim a mudança de métodos como os desses rádios que estão surgindo agora”.
— É a conversão sorrateira, dissimulada, abaixo do radar. O método sofisticou e ficou difícil, quase impossível de ser combatido, muito por conta da progressiva inserção dos indígenas de recente contato nas relações com a sociedade envolvente, e aí estão os korubo vivendo essa ameaça, que em outras áreas, estão tomadas de pastores e igrejas.
* Esta reportagem foi produzida em conjunto com o jornal britânico The Guardian (Leia a versão em inglês). Daniel Biasetto é editor de conteúdo do GLOBO. John Reid é coautor de Ever Green: Saving Big Forests to Save the Planet. A série sobre povos isolados tem o apoio da Fundação Ford, Nia Tero Foundation e do Pulitzer Center.
Por: O Globo
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